domingo, 3 de fevereiro de 2013

NADANDO NO POÇO DO GUDIM


Francisco Godinho era o nome que poucas pessoas sabiam, pois sempre fora conhecido como Seu Gudim e como Seu Gudim haveria de morrer. Sua propriedade rural começava nos limites da cidade, confrontando com o Matadouro Municipal e com o sítio de tio Geraldo.

O nome (nem o apelido) não correspondia ao homenzarrão cuja carantonha ficava meio escondida pela barba cerrada e pelos cabelos compridos. Homem de difícil trato, não era bom vizinho e nem mesmo para se ter como amigo. Aliás, coisa que ele não tinha. Diziam que já matara dois desafetos, mas ninguém se atrevia a divulgar ou pesquisar o caso, por medo do que pudesse descobrir, envolvendo o feroz proprietário rural.

Num canto de sua propriedade havia uma grota de onde minava um manancial de água límpida, o qual formava um poço antes de serpentear pelos campos afora.

O poço “do Gudim” ficava num lugar sombreado, ao qual se chegava pela estrada particular que passava pela fazenda do seu Gudim. Era um lugar gostoso, perto da cidade, preferido para passar as tardes de calor, enforcando aulas ou simplesmente fugindo para nadar.

Certa ocasião, antes, muito antes do nosso tempo, seu Gudim mandara fechar a estrada com arame farpado, o que fora a causa da morte de um ciclista desavisado que fugia em desabalada pedalação, não viu os fios, bateu nos arames farpados e teve jugular cortada. Morreu ali mesmo. (1)

Tenho desconfiança que tanto esta história como a da morte de dois inimigos, eram passadas para amedrontar a meninada, afim de não ir nadar no Poço do Gudim.

O dono do lugar não gostava da garotada passando por ali, espantava-os usando uma arma que cuspia sal, só fazia barulho e nenhum mal. Mas nós não sabíamos que o tiro era só para espantar.

Mesmo assim, o local era muito frequentado. Seu Gudim, numa mostra de quanto ruim era, mandava seus empregados jogar cacos de garrafas quebradas, no poço, a fim que os meninos não fossem ali nadar.

Era pura maldade que bem refletia a personalidade do dono.

Mas quem segura os garotos, inda mais quando se reúnem em turma, dispostos a tudo por uma aventura?

Então, o jeito era catar os cacos de garrafas, visíveis das margens do poço, antes de entrar para brincar. Raimundinho, filho do tio Geraldo, que morava no sítio ao lado, levava um saquinho de tecido fino, que montava numa vara de bambu e com ele apanhava os cacos de vidro, antes que a água ficasse turva.

Pois foi o próprio Raimundinho que cortou o pé nos cacos de vidro. Quando chegou em casa, não houve como esconder o talho feio na sola do pé.

O pai virou uma fera.

— Era só o que me faltava! Você, justamente você, nadando no poço do Gudim. Você não sabe que o homem não gosta. Quando souber, vai ter encrenca, pois além de tudo é nosso vizinho de cerca.

A mãe, enquanto desinfetava o pé e fazia um curativo com pomadas e ervas caseiras, foi pedido ao marido:

— Calma, Geraldo, calma. O Raimundinho promete que não volta lá, não é mesmo. filho?

E avisando o marido com energia:

— Não vá comprar briga com Seu Gudim, que aquilo é pura cascavel.

Tio Geraldo ficou remoendo a questão. Daí a alguns dias, sem falar com a esposa o que havia decidido, avisou-a:

— Amanhã vou falar com Seu Gudim a respeito dessa porcaria de poço.

E foi.

Depois dos rapapés de praxe entre os dois vizinhos, tio Geraldo entrou logo no assunto:

— Seu Gudim, sei que o senhor vive aborrecido com esse pessoalzinho, essa garotada que não sai aí da grotinha, nadando no pocinho.

O homenzarrão parecia estar num dia de bom astral. Respondeu com educação.

— É verdade. Apesar de tomar minhas providências, a garotada não para de me amolar. Aliás, ouvi dizer que outro dia um garoto cortou o pé nos cacos de garrafa...

— Pois é. Sei que o senhor colocou uma cerca a fim de que o seu gado entre pela grota e se perca.

— Intão não é, seu Geraldo? Até já perdi duas vaquinhas, que foram por ali beber água, escorregaram no lajeado e caíram no poço. Morreram. Isso foi antes de eu cercar o poço.

— Pois, cumpadre, (naqueles tempos, era um tratamento de respeitosa intimidade) vim lhe oferecer um negócio que vai acabar com essa amolação. Quero comprar aquela beirada, com o capãozinho e o pocinho.

— Uai, seu Geraldo, no que é que o senhor tá pensando?

— Tenho uma ideia de canalizar aquela água pras bandas do espraiado, e fazer uma plantação de arroz irrigado.

— Arroz irrigado? Onde é que já se viu?

— Vi no Rio Grande, nas beiras da Lagoa dos Patos. Como o senhor sabe, faz uns dois anos, viajei pro sul e vi muita novidade.

Francisco Godinho era homem que só acreditava vendo. Não colocou atenção no dito pelo vizinho. Mas pensava rápido. Por isso, retrucou à proposta do Geraldo Lemes:

— Vender, num vendo, que terra a gente só compra. Mas seu o senhor está mesmo interessado naquela grota que prá mim não serve prá nada, troco por aquele pastinho que o senhor tem atrás da grotinha. Prá mim serve a fim de botar umas cabeças a mais de gado no tempo da seca.

Tio Geraldo, que antes ainda se preocupava com a segunda parte da proposta, que era o pagamento, se fosse aceita a sua proposta, também foi rápido na decisão. Como não iria rolar dinheiro, achou que valia a pena e disse:

— Negócio fechado, cumpadre.

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As obras desvio do ribeirão que saía do poço do Gudim nunca foram iniciadas. Por outro lado, os garotos (Raimundinho à frente) puderam, dali prá frente, brincar no poço, definitivamente limpo de cacos de garrafas, da cerca de arame farpado e do mau humor do seu Gudim.

Só não se conseguiu foi mudar o nome do poço.



(1)Ver conto #149-As três cruzes



ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 22 de janeiro de 2013

Conto # 766 da Série Milistórias







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